sábado, 4 de agosto de 2018

Um Milhão de Dólares

No alto do Morro dos Uivos, na Transilvânia, perto do castelo do Conde Drácula, está localizada a casa do Dr. M, um corcunda, cientista e considerado maluco, que vive solitário, apenas a companhia de suas experiências. Seu laboratório é grande e mal cuidado. Espalhadas por quase toda parte há diversas macas, mesas, dezenas de tubos de ensaios de vários tamanhos e diversos trecos indefinidos. No teto uma lâmpada ilumina mal o local.
Dr. M. não está em seu laboratório, mas há alguém ali. Um menino de dez anos, seu nome é Pablo. Ele estava parado no sinistro laboratório do doutor, seus olhos corriam cheios de curiosidades pelas paredes e objetos. Ao se aproximar, ele percebeu então que em três macas havia corpos cobertos por lençóis amarelados que repousavam mortalmente. O garoto permaneceu parado à espera do Dr. M, tinha muita vontade de mexer e fuçar, porém sempre lembrava que sua mãe vive dizendo que é falta de educação mexer nas coisas dos outros, sobretudo na casa dos outros e mais ainda na ausência dos outros.
Foi então que uma porta do cômodo se abriu e o doutor M entrou caminhando com dificuldade por causa de sua perna manca. Seu jeito corcunda e o rosto torto, resultado de um derrame, podiam assustar qualquer criança, mas não à Pablo.
- Então o garotinho quer um bichinho de estimação. – disse o corcunda, não era exatamente uma pergunta, era como se continuasse uma conversa já começada. Quando ele se aproximou o garoto pode sentir um cheiro adocicado de remédio que parecia vir do doutor.
- Quero sim, senhor – respondeu educadamente.
O Dr. Olhou fixamente para os olhos do garoto que percebeu que o olho direito dele era mais redondo e tinha o dobro do tamanho em comparação com o do olho esquerdo, “por que será?”, ele se perguntou.
- Tenho uns especiais aqui – explicou dando as costas ao garoto, virando-se para a primeira maca.
- Você não teria um morcego?!
Dr. M fingiu não ouvir e puxou o lençol da maca, onde Pablo pode ver com clareza algo que jamais pensou que veria a não ser na tevê ou em livros. Ali deitada havia uma múmia. A princípio ele achou parecido com uma estátua pelo aspecto duro e imponente. Subitamente a múmia pulou de um salto, assustando o garoto. Mas não o atacou, ao invés ela começou a dançar de forma desconexa e completamente sem ritmo ou ginga. O garoto não se aguentou e começou a dar gostosas gargalhadas, deixando o doutor sem jeito diante da dança zumbi.
- Essa está em construção! – explicou ele agarrando um dos braços da múmia dançante e arrastando-a para longe de seus olhos.
- Ela é um pouco alta. Você por acaso não teria um cachorrinho?! – disse Pablo.
O doutor lhe lançou um olhar sério, aquele tipo de olhar que mamãe lança sempre quando ele mente que lavou as mãos antes de comer, e ao contrario de mamãe o doutor não ralhou com ele, apenas disse:
- Veremos – e caminhou até a segunda maca e puxou o lençol.
Dessa vez um lobisomem manso pulou para o chão e sentou como se fosse um cachorro carinhoso. Usava o que restava de roupas de gente, uma camiseta listrada e uma bermuda bege, ambas rasgadas, na cabeça um boné de aba virada para trás dando-lhe um aspecto maroto enquanto balançava o rabo freneticamente. Novamente Pablo não se assustou, aliás ele adorava histórias sobrenaturais. Ele tirou uma bolinha de borracha de um de seus bolsos, mostrou ao lobo, que ficou de olhos atentos, e jogou longe. Rapidamente o lobisomem correu atrás da bolinha e mais rapidamente voltou, mas não trouxe a bolinha consigo, não. Ao invés trazia à boca uma das pernas da múmia, fazendo o doutor arregalar os olhos e balançar a cabeça negativamente. O lobo soltou a perna da múmia aos pés de Pablo e sentou diante dele balançando novamente o rabo como se aguardasse uma nova jogada, o garoto apenas acariciou sua cabeça. Os olhos castanhos do lobo brilharam parecendo sorrir e pareciam conversar com ele, uma conversa sincera e sem palavras.
- Agora vamos ao último – disse o doutor M.
Quando ele puxou o lençol da última maca Pablo viu um Frankenstein verde de cabeça quadrada, este diferente dos demais não se mexeu, aliás parecia dormir.
Dr. M com uma chave apertou um parafuso frouxo na jugular de Frankenstein que de repente abriu seus olhos que eram cada um de uma cor, esticou os braços para sua frente, como um sonâmbulo, e em pé saiu andando em linha reta sem perceber exatamente onde estava indo. Foi andando, andando, andando, não vendo a parede a frente bateu com tudo e caiu para trás totalmente nocauteado.
O doutor então decepcionado que nenhuma de seus três experimentos estavam assustadoramente suficiente nem para dar medo a uma criança de dez anos, foi até o Frankenstein e começou a examina-lo.
O garoto voltou sua atenção às macas onde repousavam os experimentos e percebeu que havia etiquetas em cada qual. Ele puxou a etiqueta da maca do meio, a do lobisomem e leu:
Nome: Romulo P. P.
Idade: 10 anos
Valor: US$ 1.000,000
- Ah... esse vale muito...- pensou ele.

- Acorda Pablo – chamou uma voz.
O garoto sonolento abriu os olhos, não tinha certeza de onde estava. Encontrava-se na sala de aula. Havia adormecido na carteira, a turma toda o olhava. Seu amigo Rômulo da carteira atrás quem o cutucará acordando-o. Na frente da sala a professora de Língua Portuguesa o olhava por cima dos óculos, mas não parecia brava.
- Dormindo de novo, sr. Pablo?!
- Desculpe professora – disse ela baixo, mas o suficiente para ser ouvido, morrendo de vergonha.
- Você está bem? – perguntou seu amigo da carteira ao lado que estava com o braço enfaixado.
Pablo respondeu que sim, mas estava intrigado. Tivera um sonho engraçado. Não conseguia lembrar exatamente de tudo, mas tinha um corcunda e uma múmia, talvez.
Decidido a deixar para lá o sonho, ele pegou seu caderno e lápis e voltou a copiar a lição, sem lembrar nunca mais do tal sonho.


terça-feira, 17 de julho de 2018

Oitavo dia


Não espere pelo juízo final; ele acontece todos os dias”,
Albert Camus

No princípio não havia nada e desse nada Deus resolveu criar tudo e durante sete dias Ele dedicou Seu tempo em criar o universo, o céu, a terra, o oceano para cobrir a terra e fez a luz para separar o dia e a noite. No oitavo dia depois de tanto trabalhar, decidiu descansar e foi dar um passeio pelo espaço sideral. Foi caminhando descalço pelo nada olhando tudo a sua volta. Estava muito satisfeito com toda Sua criação. Um ciclo perfeitamente calculado, exercendo um bom trabalho. Imaginando se suas criações algum dia iriam se encontrar.
Deus estava atenuando Suas preocupações, depois de tudo checar, quando um homenzinho verde de três olhos morador de um pequeno planeta do extremo sul dessa galáxia se aproximou para conversar. Os dois falaram da vida e do tempo, Deus lhe contou de sua ultima criação, e quando Ele disse que os fez à Sua imagem e semelhança, o pequeno exclamou interessado.
Após se despedirem, Deus resolveu volta a Terra para ver como caminhava a humanidade, mas ao retornar e encontrar tudo em uma desordem, um desastre total, ficou insatisfeito. Ao descer não conseguiu nem empego, se tornou em mais um desempregado nesse gráfico que tenta de forma frustrada expressar ou compreender este fator econômico. Desde então há quem diga que O viu pelas ruas na esperança de encontrar alguém com quem ao menos agradavelmente possa conversar. Nas ruas ele observa que as crianças brincam e os poetas sonham. Num desses dias de tédio e curiosidade Ele se aproximou de um homem de aparecia triste e mal cuidado que hoje pede esmola  e lhe perguntou como era o mundo para ele. O homem sem pensar muito disse:
                        “Aqui embaixo a maioria das pessoas vão às igrejas e adoram a um Deus que foi perseguido por pessoas iguaizinhas às elas e têm tão pouca, ou nenhuma empatia pelo próximo. Olhe para mim. Fui um rico comerciante, quando tinha muito ouro, muitos eram meus amigos; agora mísero me ignoram, nem água me dão quando tenho sede.”

Completamente perturbado com o que ouviu, calado Deus se afastou.
Nos dias que se sucederam, sem ter o que fazer ou mesmo por extrema solidão, Deus não agüentou e decidiu ir embora para outro lugar, deixando a humanidade adorando cantores, pastores, políticos, personagens ou qualquer desgraça que lhes apetecesse.
O homem com quem Deus havia conversado O viu indo embora e pensou:
Pobre de Deus que não faz parte de nenhuma mídia, não é youtuber, não tem nem rede sociais... deve ser difícil ser rei há bilhões de anos e nunca ter tido uma coroa”.



Nota: este conto foi livremente inspirado na música Octavio Día, performance de Shakira.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Viva para sempre


União da Vitória não é uma cidade muito popular, nem tem muitos habitantes, mas para os amigos Gabriel e Pablo, essa cidade é o mundo todo, e muito mais. Era uma tarde ensolarada de quarta-feira, dezembro de 1979, os amigos andavam pelo bosque aproveitando o máximo as ferias de verão. Gabriel é tímido e só tem Pablo como amigo, nas mãos um livro de contos, na qual ele lia Gênio do Amor em voz alta. Pablo nunca gostou muito de ler, porém escutava com atenção.
–Pablo, me diz uma coisa: você me acha estranho? – perguntou Gabriel fechando o livro.
Pablo não respondeu de imediato, pensou um pouco. Gabriel o mirava aguardando resposta.
E se é para não mentir, Pablo no fundo o achava um pouco diferente, não anormal, mas não se importava nem um pouco, e mesmo assim gostava do amigo.
–Hum? – fez Gabriel.
–Ah... – fez Pablo–... Sinceramente?...
Gabriel o olhou depressa.
–Claro.
–Sim. Mas o que quê tem? Ninguém é igual a ninguém.
Gabriel ficou de cabeça baixa, pensando.
–Você se lembra de como costumávamos brincar quando criança? – perguntou Pablo na intenção de mudar de assunto, pois sabia que o amigo possuía analises cabisbaixa, e é facilmente frustrado. Há cinco meses os pais dele se divorciaram, onde o pai fora morar com outra mulher.
Mas Gabriel distraído olhava a volta, um pouco longe avistou algo e correu em direção. Pablo correu atrás do amigo.
Pablo alcançou Gabriel. O amigo estava olhando um objeto um tanto estranho. Era uma capsula dessas que vem os brinquedos do famoso chocolate Kinder Ovo. Alaranjada e com algo dentro, porém esta diante dos dois não era tradicional, tampouco. Era grande, com mais ou menos noventa centímetro.
–O quê... Que coisa é essa? – perguntou Pablo.
–Cara, imagina o tamanho do kinder ovo que teve ter... – Gabriel olhava a volta.
De repente a capsula mexeu, como se fosse um ovo preste a chocar, e abriu-se no meio. De dentro saiu um galo português colorido de brinquedo feito de madeira. Não tinha pés, apenas uma mola. O bicho, ou brinquedo, olhou para lados e saiu pulando para dentro da floresta.
Gabriel admirado foi atrás do brinquedo.
–Gabriel aonde que você vai? – gritou Pablo. O amigo não respondeu então ele foi atrás.
Foram correndo entre as árvores e o mato a volta, pisando nas folhas caídas ao chão; passaram por um riacho, onde sem querer molharam os pés; o galo dava pulos longos, Gabriel chegou a perdê-lo de vista.
–Onde ele está? – perguntou Gabriel mais para si do que para o amigo.
Pablo não respondeu, não estava gostando dessa brincadeira.

''...até amanhã; para sempre meu!''

Pablo olhou a volta.
–Você ouviu isso?- perguntou ele.
–Isso o que? – argumentou o amigo.
–Essa voz...
Pablo procurava essa voz que parecia uma melodia, um coral de anjos.
Gabriel não escutou nada, ainda procurava o galo de madeira. Então a alguns metros dali, o galo os olhava, em cima de outra capsula amarela, como se a chocasse. Gabriel e Pablo correram até ele.
O galo abriu o bico e emitiu o som mais estranho que os garotos já tinham ouvido, e de repente saiu pulando até sumir de vista. Essa capsula mexeu e se abriu igual à primeira; e como ela, saíram outros brinquedos. Pablo se assustou tanto que correu para longe desaparecendo.
Dessa vez apareceram quatro super-heróis de brinquedo: um Superman, um Batman, um Homem-Aranha e um Wolverine. Todos flutuavam sorrindo na altura dos olhos do garoto.  Gabriel olhava-os fascinado.
Wolverine se aproximou e expeliu suas seis garras tão de repente que Gabriel se assustou. Todos riram. Então Batman se adiantou e cochichou ao seu ouvido:
—Nós vamos te transformar num super-herói.
O garoto olhou de canto de olho, desconfiado.
Superman veio e lhe deu um beliscão carinhoso na bochecha. O garoto já estava mais relaxado, pois eles sorriam.

—Você acredita em tudo?! — perguntou Wolverine à Gabriel.
—Você é jovem e sonhador— disse Superman sorrindo — Nos dê seu espírito.
Gabriel não entendia, eles falavam rápido. Ele olhou para o lado a procura de Pablo, mas o amigo não parecia estar por perto.
—Estamos apenas começando— explicou-lhe Batman.
—Meu amigo, ele... — disse Gabriel.
—Você viverá para sempre, ele estará te esperando eternamente... — disse Superman voando de um lado para o outro.
—Vocês estão prontos? —Disse Homem-Aranha aos colegas. Os outros heróis se reuniram atrás do aracnídeo.
—Ataque... —cochichou Wolverine, mas Gabriel ouviu.
Ao ouvir isso Homem-Aranha expeliu de uma de suas mãos um jorro de sua teia que grudou nos dois olhos do menino.
—Não! —exclamou o garoto assustado. —Não enxergo nada.
Mas os heróis não deram ouvidos; eles pegaram Gabriel e o levaram para mais dentro da floresta, flutuando. Quando o soltaram, retiraram a teia de seus olhos e o garoto viu algo que o deixou surpreendido. Diante deles, no meio do bosque havia um cubo mágico do tamanho de uma mesa, suas seis cores todas embaralhadas. Os heróis caminhavam em cima do cubo.
—Sempre buscamos sua pessoa. — falava Homem-Aranha.
O garoto a cada instante entendia menos o que eles queriam lhe dizer; será que tudo isso era predestinado?
Ao lado esquerdo próximo a uma árvore havia um grande ampulheta com areia azul escorrendo de cima para baixo, depois de baixo para cima.
Então o quadrado central da parte de cima do cubo se soltou do resto do cubo deixando um espaço escuro.
—Você tem que entrar ali. — disse Homem-Aranha.
Com um pouco de dificuldade os heróis ajudaram Gabriel a entrar no cubo; acima Superman segurava o quadrado faltante.
Perto dali, Pablo se aproximou e não entendeu a cena que via.
—Rápido! Ele vem vindo. —cochichou Wolverine.
—SE ABAIXA! — gritou Batman a Gabriel.
O garoto obedeceu; os três heróis entraram junto com ele no cubo, e Superman largou o quadrado e se jogou para dentro também. O quadrado caiu e se encaixou novamente ao cubo. Pablo correu para apanha-lo, porém ao se aproximar o cubo diminuiu ficando no tamanho normal e exato de em cubo mágico.

''Eu estarei te esperando eternamente como o Sol. ''

O menino apanhou o cubo e montou suas respectivas cores, em vão.

''Viva para sempre, para o momento. ''

Então ouviu passos, pés pisando e esmagando folhas, ele olhou para trás e o viu: um Kinder Ovo grande, com olhos, mãos e até de boné o espiava de longe e tentava se esconder; ao perceber que o garoto o vira, correu. Pablo foi atrás.
Correu por dentro da floresta até sair num outro bosque, o Kinder havia sumido, mas havia alguém sentando em um tronco; um ser pequeno, oval, vestido com traje marrom a rigor, do inicio do século XX, ninguém menos que Humpty Dumpty. Possuía dois olhos vermelhos, como se não dormisse há dias e dentes pontiagudos. Uma aparência perturbadora. Nas mãos ele segurava um pequeno chocolate kinder ovo; ele abriu a embalagem e exclamou:
—CHOCOLATE! ÔÔÔÔÔ ADORO CHOCOLATINHO... — Então mordeu um pedaço. Depois pegou a pequena capsula e a abriu. —BRINQUEDO! MAIS UM PARA MINHA COLEÇÃO. — Ele colocou a miniatura ao lado. — E AGORA?! — Ele então olhou para Pablo. — ACABOU. — E caiu do tronco, se espatifando todo no chão.
Pablo ficou totalmente confuso. Ao olhar melhor para o brinquedo que Humpty havia ganhado no chocolate, se assustou, pois era uma miniatura exata do Gabriel.

''Sim, eu me lembro de cada palavra dita... ''

Ele apanhou a miniatura, junto com o cubo e triste caminhava de volta para casa. No bosque havia várias capsulas laranjas e amarelas, abertas e fechadas, e ele ainda ouvia aquele coral de anjos.

''Sentimentos guardados, jamais serão achados. E o segredo está guardado comigo. ''



NOTA: este conto foi livremente inspirado no videoclipe de Viva Forever, performance de Spice Girls.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Fantasia


29 de Julho de 1995
Os habitantes de União dos Anjos continuam animados com o parque de diversões Poeira-Quente, apesar de este estar na cidade há mais de quinze anos. É um parque temático mais acessível de então, diversão para toda família. Dentro do parque há também o Circo do Palhaço Pogo-Zo. O parque está localizado à frente do cais da cidade, uma vista linda, digna de cartão postal.
Quem visita o parque hoje, não imagina que há alguns anos o local fora motivo de polêmicas e controvérsias entre a mídia. Sua inauguração foi em 1979, na época era mais famoso que qualquer outro parque da América Latina. Porém em meados da década de 1980, o parque chamou atenção nacional devido ao um incidente: um carrinho da montanha russa ''Sorriso do Dragão'' quebra havendo vários feridos e mortos com corpos desaparecidos de crianças e adolescentes. Apesar da repercussão, os donos do parque conseguiram abafar o caso e, mais tarde, tentaram uma nova jogada de sorte, porém inusitada. Silvio Bertollo, o alter-ego do famoso Pogo-Zo, resolveu trazer para seu circo novas atrações e começou a exposição de pessoas com deformidades congênitas para atrair o interesse do publico. Pessoas de todo o Brasil começaram a freqüentar o circo, onde eram desafiadas a verem de perto crianças e/ou adultos com duas cabeças, três ou quatro pernas, irmãos siameses, pessoas com pedaços do corpo atrofiados, mulheres barbadas, entre outros. O publico ficava horrorizado, se impressionavam muito com o que viam, se assustavam e até deixavam o circo no meio do espetáculo, com medo do que viam.
Mas hoje, alguns anos depois, não há mais isso.
Pablo um garotinho de oito anos pediu incessantemente à sua mãe para levá-lo ao parque este sábado. Foram andando de mãos dadas pelo cais. Próximo da entrada ao acesso tinha um garoto adolescente dando voltas de bicicleta, estava ouvindo música num diskman e cantarolava harmonicamente alto:
“A felicidade me deixou mudo, subo aos céus, ouvindo musicas dos anjos, belas vozes, a voz de minha namorada...”.
Do outro lado do cais havia uma cena um tanto estranha: um palhaço amarrado num poste e ao seu lado, como se estivesse vigiando o palhaço, uma garota adolescente de cabelo rosa chiclete.
Ao entrarem no parque o mundo fantástico fascinou o pequeno garoto. Foram em quase todos os brinquedos. Na montanha russa, que é o brinquedo favorito de Pablo, foram duas vezes. A mãe do garoto aproveitou para deixá-lo comer besteiras, como algodão- doce, cachorro-quente, refrigerante. Até ganharam um ursinho de pelúcias num jogo de tiro. Foi um dia bem divertido.
Depois de o céu ter escurecido, a mãe disse que já estava na hora de irem para casa. O parque estava lotado. Foi quando seu ursinho caiu no chão, Pablo abaixou-se para apanhá-lo, soltou a mão da mãe, a multidão se esbarrando... O garoto então se perdeu de sua mãe.
Ficou desesperado. Olhou para cima, muitas pessoas, muitos rostos. Muitas vozes e muitas risadas. Escutou o choro de alguma criança perto, o que o assustou, o sentimento de desespero começou a tomar conta dele. Continuou andando, virando as ruas de barraquinhas,... Então alguém lhe falou:
– Não está perdido menino?
Pablo ergueu a cabeça. Era um palhaço vendedor de balões.
– Estou procurando minha mãe. – disse educadamente.
Pogo-Zo olhava fixamente para o menino, um leve sorriso em seus lábios.
– É uma loira?!
O garoto respondeu que sim.
– Ah... Eu a vi entrar na Casa dos Espelhos. – disse infantilmente apontando para o final da ruazinha.
Pablo olhou para o brinquedo, estava vazio, mesmo assim o garoto calado foi andando em direção ao brinquedo. Então Pogo-Zo lhe falou:
– Quer um balão? – ofereceu.
O garoto fez que sim ao se aproximar.
Aposto que azul é sua cor favorita. –arriscou o palhaço abrindo um largo sorriso.
Pablo feliz pegou o balão, agradeceu e foi em direção à Casa dos Espelhos. Quando chegou, viu que estava interditado com uma placa “Em obras”. Algumas pessoas estavam indo embora. Não havia ninguém por perto. Alguns brinquedos foram apagando suas luzes, indicando o fechamento do parque. O garoto decidiu entrar e procurar pela mãe.
A Casa dos Espelhos era bem iluminada, suas paredes consistiam em serem vários espelhos enormes que deformavam seu reflexo. Ao entrar parecia estar em outra dimensão, o volume do mundo parecia ter desaparecido por completo. Ele foi caminhando olhando para todos os lados. Havia um Pablo muito alto no espelho a esquerda, um muito baixo na direita, num outro um Pablo muito magro... Muito gordo... Tinha até um espelho que não refletia.
De repente uma voz alta falou:
–O que você vai fazer quando sair da prisão?
O garoto congelou de medo. Olhou para os lados a procura do dono da voz, mas não tinha ninguém. E para horror do garoto outra voz respondeu:
Eu vou me divertir!
Parecia eco vindo de cima. O garoto olhos para os lados, mas não havia ninguém.
A voz voltou a perguntar:
–O que você vai fazer quando sair da prisão?
Eu vou me divertir!
Silêncio.
Então ele chegou ao ultimo corredor, de frente para o ultimo espelho. Este espelho parecia ser normal, não deformava em nada. Seu reflexo era exato. Mas sua mãe não estava ali, o palhaço pelo jeito se enganou.
E por falar em palhaço, o garoto o viu surgir no reflexo do espelho. O mesmo palhaço que ele havia falado há alguns instantes, ainda com os balões em mãos. Pablo olhou para o lado esperando ver o Pogo-Zo, mas ele não estava ali, o que era meio estranho, pois seus reflexos estavam muitos próximos. Era como se ele estivesse apenas no espelho.
O garoto olhou de novo para o espelho e se assustou, pois o palhaço estava soltando uma língua enorme, verde e gosmenta. Olhou para seu reflexo, este, entretanto agiu por conta própria: o Pablo no espelho sorriu e lhe piscou um olho.
Assustado, o menino correu de medo.
Enquanto isso na frente do parque, o garoto de bicicleta continuava dando voltas e cantando:
–''Tão doce fantasia... sinto como se estivesse em um sonho, sonho sem dormir... você é minha fantasia...''
E a menina de cabelo cor de chiclete também continuava ali perto, porém o palhaço já não estava mais lá.

Fim


quarta-feira, 11 de julho de 2018

Gênio do Amor


Primeira parte

12 de Junho 1982
União dos Anjos é uma pequena cidade no litoral do Paraná. Tranquila e hospitaleira é uma cidade onde as pessoas saem para trabalhar e sentem a segurança de voltar e verem as mesmas pessoas todos os dias.
A cidade tem um ponto turístico muito visitado, o parque de diversões Poeira-Quente. Este parque possui duas atrações principais, a montanha russa Sorriso do Dragão e o Circo do Palhaço Pogo-Zo.
Era o Dia dos Namorados e Teodoro um jovem que acabara de sair do exército levou esta noite sua namorada Shirlei, de dezesseis anos, ao parque. Chegaram após o crepúsculo. Shirlei achava linda a roda gigante à noite e de longe era possível ver todo o esplendor do parque sobre o cais. O local estava cheio, como de costume num final de semana, tinha famílias inteiras, crianças correndo, casais namorando, adolescentes flertando, meninas rindo... Enfim, tinha de tudo.
O que você vai fazer quando sair da prisão? – cochichou Shirlei ao ouvido de Teodoro.
– Eu vou me divertir. – respondeu ele rindo.
– O que você considera diversão?
– Diversão, naturalmente diversão...
“Eu estou emudecida de felicidade”, pensou Shirlei contente, “estou nos céus, ouvindo a lira dos anjos, as mais belas notas, a voz de meu namorado”. Teodoro é carinhoso, ele leva Shirlei pelo braço quando estão andando, é nessa hora que a garota se sente feliz em ser uma fêmea.
Parece que estou em um sonho,... sonho sem dormir...”, pensava ela.
Os pensamentos de Shirlei voavam para longe.
–Oi casal bonito – chamou um velhinho simpático com um papagaio numa gaiola. –Que tal um poema?
–Um realejo! –exclamou Shirlei animada. – Eu gosto de poesia – complementou olhando para seu namorado.
O senhorzinho se aproximou girando a manivela com muitos bilhetes de mensagem numa pequena caixa, uma musica animada tocava enquanto ele fazia isto. Quando parou o papagaio sistematicamente apanhou um bilhetinho com o bico. O velho pegou e leu em voz alta:
“caracóis caminham sob meu umbigo
Enquanto você enterra teus olhos
Nos meus.
Dois beija-flores limpam meus ouvidos!”

Quando terminou, Teodoro sorrindo tirou umas moedas do bolso e o pagou. Porém Shirlei não tinha gostado muito desse poema. Teodoro, entretanto, pareceu nem dar importância.
Então alguém roubou sua atenção. Ali no meio da multidão, no meio da alegria havia alguém isolado. Um palhaço estava sentado num banco sozinho, segurando vários balões coloridos, de cabeça baixa, parecia pensativo, até mesmo triste.
Shirlei comentou sobre isso com seu namorado, mas ele, como sempre, não deu importância. O palhaço então os mirou.
Teodoro comprou-lhe uma maçã do amor e disse:
Fruto estranho...
Shirlei olhou depressa para ele. Havia um sorriso em seus lábios, mas ela ficou séria. “Fruto estranho?”, que comentário estranho, ela não soube interpretar.
O casal decidiu ir à montanha russa, a fila estava enorme, claro, o brinquedo mais desejado por todos. Shirlei sentiu fome e Teodoro disse que iria comprar dois cachorros-quentes, e que ela ficasse guardando fila.
Com o passar dos minutos a fila foi diminuindo lentamente. Shirlei não gostava de ficar sozinha. Ela ficou observando as pessoas ao redor, pensando em Teodoro. Hoje é sábado e durante toda a semana seu namorado sumiu. A garota sentiu muita falta dele, e de como ele a faz rir quando começa a dançar. Teodoro é assim, às vezes some sem dar explicações.
Quando chegou a vez de Shirlei subir no carrinho, Teodoro ainda não havia voltado e ela não queria ir sozinha. Saiu da fila e ficou ao lado esperando. Passando-se vários minutos, que pareceram eternos, brava ela cruzou os braços. Será que ele foi embora? “Não, ele não faria isso comigo”, pensou.
Alguém se aproximou dela.
–Oi moça– disse uma voz.
A garota virou-se. Era o palhaço vendedor de balões, o mesmo que ela vira sozinho.
–Oi... – respondeu sem jeito.
Shirlei olhou para o rosto dele, ela sabia quem era o homem por trás, o famoso Pogo-Zo. Deveria estar já na casa dos quarenta anos, a maquiagem de palhaço não conseguia esconder o principio das rugas. Os dois ficaram em silencio.
–Está sozinha? – perguntou ele olhando fixamente para seus olhos. A garota estava completamente encabulada.
– Estou esperando meu namorado – respondeu olhando para os lados.
O palhaço ficou em silêncio a observando. Ela não sabia o que dizer, ficou quieta.
– Você quer um balão? –o ofereceu.
– Não... – não queria ser ridiculamente infantil. –Não tenho dinheiro.
– É de graça – disse ele rindo, pegou um cor-de-rosa – Aposto que rosa é sua cor favorita.
Ela pegou timidamente. Não queria um balão, queria seu namorado e queria ir embora daquele parque.
– Obrigado... – agradeceu ela – Eu... Acho que vou embora.
– Hã?... E o seu namorado? – perguntou o palhaço. – Ele não irá ficar chateado?
Shirlei estava confusa. Qual era o real interesse do palhaço?
–Sim, mas... – começou ela, mas Pogo-Zo a interrompeu.
–Ele parece gostar tanto de você, pelo menos ao te trazer aqui.
A garota ficou mais constrangida. Será que o palhaço estava os observando? Será que ele queria lhe dizer algo?
– Eu vou embora – disse ela decidida.   – Mas se você o vir... – ela sabia que ele não o veria. – Por favor, diga a ele, que ele tem um sentimento do mais profundo.
Hoje mais cedo, no colégio, ela tinha feito um cartão de dia dos namorados para Teodoro, mas o cartão não chegou até ele porque ela não colocou o seu nome. Ao invés, ela remeteu “Para o gênio do amor”, no caso ele mesmo.
Após isso ela se retirou. O palhaço, sem entender, voltou a sentar-se no banco.
No caminho para casa Shirlei confusa e desconfiada pegou uma ficha e foi até o telefone público. Discou o numero da casa do Teodoro. O telefone chamou apenas uma vez, então deu sinal de fora de área e a voz da gravação da operadora disse:
''Você não ligou para o número errado! Você não ligou para o número errado! Seu saldo de fichas é: zero. Você não ligou para o número errado! Você não ligou para o número errado! Seu saldo de fichas é: zero... ''
Sem entender ela colocou de volta o fone no gancho e foi para casa.

Fim



segunda-feira, 9 de julho de 2018

Querubins, capítulo 14, versículo 6 a 12.


Então o céu se abriu e vi dois anjos descerem em minha direção. Pegaram nos meus braços e me levaram para as nuvens. Soltaram-me diante do trono de Deus. Ao meu redor havia muitos anjos, todos com asas de um branco que pareciam brilhar. Anjos querubins, com harpas, outros com espadas ou escudos. De primeira, segunda e terceira esfera. Com suas faces sisudas que causam desconforto até o mais sereno mortal. E eu sei que me observavam. Ao lado direito do trono de Deus estava sentado seu único filho que me olhava com um olhar pesaroso. A face de Deus, porém, eu não conseguia ver, não podia. Então um anjo com seis asas, duas das quais cobria seu rosto e outras duas cobriam seus pés, aproximou-se de mim com uma taça, da qual me fez beber o mais amargo dos vinhos. Quando cai de joelhos outro anjo com um cajado em mãos me levantou. Prometera-me nunca mais haver pranto nem dor, e que todas as minhas lágrimas iriam secar.
Mas não era isso que eu vi ao olhar para baixo no mar. Eu me vi num barco, navegando através dele. Não. Navegava nas minhas lágrimas, entre gritos e desespero. Sangue meu caia no chão do barco, mas não eram gotas de sangue, eram sentimentos. Eis que vi tudo o que eu havia feito momentos antes dos anjos me levarem. Eu no barco. E ele com um machado em mãos cortando meu pescoço. Morangos de sangue saltaram do meu jugular nesse momento. Eu me vi perdendo a cabeça. E vi a nuvem vermelha ao redor. Suspensa. E vi o céu de chumbo onde fui parar. Continuei olhando para o barco abaixo e os vi pegar e beber o vinho tinto que eu havia comprado no dia de ontem. Então outro anjo, com uma coroa na cabeça fez-me vestir meu melhor terno, o de funeral. Foi quando lembrei que tinha visto tudo isso num sonho. Sim – eu profetizei. Mas no sonho era diferente. No sonho ele havia acomodado sua corda em meu pescoço e eu saltei.
Quando olhei novamente para o barco meu corpo já estava em um caixão e eles liam meus melhores poemas e choravam. Depois jogaram o caixão no mar. Jogaram também meu diário preto e todos os quadros que eu havia pintado. Então Deus deu sua palavra e todos os anjos me olhavam, mas eu já nem escutava. Permaneci alienado em mim mesmo, no meu choque, permanentemente. Eu não chorei. Eu não pedi nada. Apenas permaneci em silencio, absorto, distante. Sem perceber a musica que a harpa tocava ou as flautas.
Se alguém me fizer alguma pergunta ou quiser qualquer satisfação, apenas direi que não responderei, as respostas estão no meu diário preto que o mar engoliu junto com minhas lembranças. Todas perdidas no mar. E para sempre. Então eu ergui minha cabeça, sem mais lágrimas e os encarei. Eu os desafiarei. Eles vão me exilar. Iram me expulsar do reino dos céus. Mas mesmo que eu seja enviado aos infernos eu não irei me importar. Mesmo que se passem mil anos. Eu subirei sob o céu tempestuoso com um sorriso em meus lábios. Derrubarei os muros e os portões. Meu consolo é que eu tenho uma vida para viver. Uma vida após a morte. E quando todos morrerem e todos vão morrer, eu os verei a distância.


domingo, 8 de julho de 2018

As sobras


A mesa era enorme. E o jantar já estava servido. Lucero vestido elegantemente com um colete e gravata borboleta e Fiorenzo era o convidado principal. Fiorenzo retirou seu casaco preto de lã e pendurou no chapeleiro, dobrou pacientemente as mangas da camisa e afrouxou um tanto o nó da sua gravata, sentia-se sufocado toda vez que usava. Quando foi sentar na ponta da mesa Lucero o interrompeu dizendo ser ali o seu lugar. Fiorenzo ficou sem entender. Lucero não era o garçom?
Fiorenzo, então, sentou ao lado. E Lucero na ponta. Quando Lucero pegou os finos talheres de prata, Fiorenzo viu o que tinha em seu prato: seu coração. E em seu peito um buraco do tamanho de um punho, tons leve de sangue sujavam sua camisa branca, e ele horrorizado arregalou os olhos e a boca. Emudecerá em frente ao choque, ao inesperado.
Lucero começou a cortar meticulosamente em pequenos cubos e devagar os comia. Era um belo pedaço, o vermelho mais vivo que seus olhos já viram, e macio, uma seiva apetitosa escoria suavemente como nascido de uma relva de Dezembro, com salsa e limão era um prato cheio, um prato muito bem preenchido. Era como se fosse um fruto colido na estação certa. Lucero serviu duas taças do melhor vinho magnólia, um vinho de terrível imoralidade derramado puramente nas taças do furor, ora o preferido de Fiorenzo, eles adoravam o gosto doce e amargo dessa embriaguez. Ao tomar um demorado gole o sabor nostálgico incendiou sua garganta descendo fundo em sua goela rumo ao fígado. A cada mastigada e engolida o estado de Fiorenzo ia ficando cada vez mais fraco, sua pressão baixava a cada instante. Até que ele não agüentou e caiu no chão. Prostrado, ele virou os olhos lentamente para o outro na mesa, ainda comendo. Sentia-se mastigado por ele. Lucero, por sua vez, parecia apreciar o que devorava, afinal estava do jeito que ele queria, aliás, seu gosto estava ainda melhor.
Ao terminar de comer, ele limpou os lábios com guardanapo de pano, apanhou um charuto que tinha guardado para uma ocasião especial, como esta, passando por debaixo do nariz, cheirando antes de acender. Enquanto fumava, taciturnamente ele refletia que alguma vez algum poeta disse que o amor é ardente, e era isso mesmo que ele sentia agora que seu coração estava sendo usado como cinzeiro e as cinzas de seu charuto caiam queimando. E depois quando o amor acabava o que tinha? Um silêncio cíclico e insuportável, já sentido antes, numa outra época.
Ao fim, quando foi apagar o charuto pressionando-o contra a artéria, sentiu lágrimas de puro álcool crescerem em seus olhos devido a ardência. Sua língua era uma lenha seca. Ele levantou e olhou o corpo já inerte de Fiorenzo e com a toalha da mesa o cobriu. “Os restos para os cães”, pensou ele.